Infância perdida no coração da guerra
A infância deveria ser um tempo de inocência, risos e sonhos que se estendem até o céu. Em Gaza, no entanto, a infância foi reduzida a cinzas — queimada pela dor e moldada pela crueldade. As crianças de Gaza, que deveriam estar perseguindo borboletas e aprendendo o alfabeto, estão, em vez disso, cercadas pelos escombros da guerra e pelo estrondo das explosões. Desde que eclodiu o genocídio israelense, em outubro de 2023, sangue, destruição e fome se tornaram a realidade diária das crianças de Gaza. Essas feridas não cicatrizarão com o tempo; estão gravadas na alma.
Desde então, aproximadamente 20 mil bebês nasceram em Gaza — uma criança a cada dez minutos. Mas esses nascimentos ocorreram sob as condições mais brutais inimagináveis: hospitais desprovidos até dos equipamentos mais básico, centros médicos reduzidos a destroços e trabalhadores de saúde obrigados a trabalhar sob o medo de perderam suas vidas. O milagre do nascimento envolto em pânico e incerteza.
Nenhuma criança em Gaza foi poupada da brutalidade dos bombardeios israelenses. De acordo com o Escritório Central de Estatísticas da Palestina, cerca de 14.350 crianças foram mortas — isto é, em torno 44% de todos os civis mortos por Israel; ou o equivalente a quatro crianças assassinadas a cada hora.
Philippe Lazzarini, comissário-geral da Agência das Nações Unidas para Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA), descreveu a situação com uma clareza aterradora: “Mais crianças foram mortas em apenas quatro meses em Gaza do que em todos os conflitos globais combinados nos últimos quatro anos e meio.”
Direitos roubados
Essas crianças não apenas perderam a vida. Perderam também seus direitos mais básicos — coisas que o mundo considera garantidas.
Mais de 625 mil crianças foram privadas de sua educação. Escolas foram destruídas ou transformadas em abrigos para famílias deslocadas. Outras são simplesmente iníveis devido ao perigo constante. As ruas, que antes ecoavam com o riso das crianças, agora são marcadas por vidros estilhaçados, ruínas e silêncio. Os parquinhos se tornaram cemitérios. As salas de aula viraram campos de batalha.
O único som que se impõe é o ronco de fome que vem de seus estômagos. Em Gaza, as crianças travam duas guerras: uma contra as bombas, outra contra a inanição.
Filhos da guerra
Para milhares de crianças nascidas durante o genocídio, a ideia de uma “vida normal” é uma fantasia distante. Crianças como Ezz Aldin, filho de minha irmã mais velha, com pouco mais de um ano, e Hossam, o bebê de seis meses de minha outra irmã, nunca conheceram a paz. Nascidos sob bombardeios e fuligem, esses bebês não comemoraram sequer seus primeiros meses com um bolo. Suas memórias são preenchidas por sirenes e uma fome inável.
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Para as mães, até os cuidados mais básicos são um obstáculo intransponível. Fraldas, leite em pó, remédios — esses já não são itens cotidianos; são artigos de luxo. As prateleiras dos mercados continuam vazias. A assistência humanitária, quando chega, muitas vezes é retida, atrasada ou inível. Um dia, minha irmã me disse, incrédula: “Nunca imaginei que me veria contando quantas fraldas meu bebê usa”. Ela não está sozinha. Toda mãe em Gaza faz o mesmo cálculo, em desespero.
Noor e o ovo
Minha sobrinha Noor é uma linda menina de três anos de idade. Nós a mimamos sempre que podemos. Um dia, minha irmã contou uma história de partir o coração. Noor não parava de pedir uma coisa simples: apenas um ovo. Mas não havia nenhum. Não havia comida no mercado — nenhuma. Isso se tornou uma angústia cotidiana – como explicar para uma criança que não há comida? Nem sequer um ovo?
Todas as manhãs, Noor acordava e pedia só um ovinho. Se tornou seu sonho. Mas não havia ovos – nem nas lojas, nem mesmo da galinha da família, que havia parado de botar por motivos desconhecidos. O pai dela, desesperado para vê-la feliz, preparou uma mistura caseira especial para ajudar a galinha a se recuperar. Milagrosamente, depois de muitas tentativas frustradas, deu certo – a galinha botou um ovo.
Quando sua mãe o cozinhou, a alegria de Noor iluminou a casa. Ela pulou e gritou animada: “Ovo! Ovo! Ovo!” Não era apenas uma refeição. Era esperança. Era uma vitória em um lugar onde vitórias são raras. Um simples ovo virou uma celebração.
Chocolate e biscoitos: O novo impossível
Todas as manhãs, Noor pede chocolate e biscoitos – como qualquer criança pediria. São pedidos inocentes. Mas agora, em Gaza, eles são sonhos impossíveis.
— Não tem chocolate. Não tem biscoitos — minha irmã sussurrava, sem saber como dizer a verdade à filha. Como explicar a uma criança de três anos que o mundo falhou em alimentar suas crianças? Que o chocolate agora é mais uma vítima da guerra?
Noor é apenas uma entre milhares de crianças cujas pequenas alegrias da infância foram roubadas pela fome e pelo cerco.
Histórias de partir o coração
Azmi Abu Al-Shaar: Sua última mensagem
Em janeiro de 2025, Azmi Abu Al-Shaar, de somente dez anos, escreveu uma mensagem no celular minutos antes de ser morto por um bombardeio israelense. Era curta — um adeus que nenhuma criança deveria ter que escrever. Pedia perdão à família. Dizia que os amava. Depois, silêncio. Suas palavras foram um doloroso lembrete de como a infância se tornou algo frágil em Gaza.
Moatasem Shaqshaq: O sonho de estudar
Moatasem, de oito anos, vive em uma barraca com a família, deslocada pelos bombardeios. Quando perguntaram sobre seus sonhos, não falou em brinquedos ou eios na praia. Disse apenas: “Quero que a guerra acabe para poder voltar à escola”. Esse é o seu sonho. Enquanto crianças no mundo todo sonham com aventuras e diversão, Moatasem sonha com cadernos e lousas — um futuro sem medo.
Bisan Al-Tabban: Desenhando a paz
Bisan, de sete anos de idade, mora em Rafah em uma barraca com mais doze pessoas. Quando perguntaram qual era seu desejo, respondeu: “Não quero mais ouvir bombas. Quero desenhar de novo”. Simples assim. Um desejo tão puro — poder desenhar. Em um lugar onde cada dia traz um novo perigo, o anseio de Bisan pela arte é um lembrete do que foi roubado das crianças de Gaza: imaginação, liberdade e paz.
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O projeto de Fatima Suhwail: Histórias sob a árvore
Numa generosa tentativa de resgatar um pouco da infância, a jornalista Fatima Suhwail começou a reunir crianças deslocadas sob uma árvore para contar histórias. Sua iniciativa, “Contos sob a árvore”, oferece a elas alguns minutos de alívio. Uma pequena janela para um mundo de sonhos. Pode parecer pouco, mas, para essas crianças, é tudo — uma forma de se lembrarem do riso, da fantasia e da esperança.
Direitos negados
As crianças de Gaza foram roubadas de direitos universais. Segundo a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, todas as crianças têm o direito de crescerem livres de violência, de receberem sua educação, bem como cuidados de saúde, de brincarem e conhecerem o mundo. Em Gaza, esses direitos não existem.
O direito à educação:
Enquanto crianças em todo o mundo carregam suas lancheiras e mochilas para a escola, as crianças palestinas não têm mais do que ruínas. Salas de aula bombardeadas, falta de suprimentos e medo constante da morte tornaram aprender nada mais que um sonho.
O direito de brincar:
Em todo o mundo, crianças correm nos parques, andam de bicicleta, brincam de esconde-esconde. Em Gaza, brincar se tornou um privilégio inalcançável. Em vez disso, buscam comida e abrigo. Parquinhos foram substituídos por ruínas tomadas por sirenes dos ataques aéreos; os risos, afogados pelos drones.
O direito à segurança:
A segurança é um direito fundamental — mas não em Gaza. As crianças palestinas vivem sob constante ameaça. Casas, escolas e mesmo abrigos — não há lugar seguro. O medo corrói suas mentes; o trauma se tornou sua maior companhia.
O direito à saúde e ao bem-estar:
O o a médicos e medicamentos é um direito, não um privilégio. Em Gaza, porém, os hospitais estão em ruínas. Quase não restam suprimentos médicos. Crianças morrem de doenças e ferimentos absolutamente tratáveis — quando não de fome. O mundo assiste, e não faz nada.
Um grito a todo o mundo
Que mundo é esse que deixa crianças morrerem por politicagem barata? Que tipo de gente somos nós se tampamos os ouvidos quando crianças choram por comida? As crianças de Gaza não precisam de piedade. Precisam de justiça. Precisam que o mundo ouça seus gritos, suas dores e aja — não no futuro; agora mesmo.
Toda criança merece uma cama quentinha, uma sala de aula, brinquedos, uma refeição digna. Em Gaza, crianças, porém, recebem não mais que suas próprias sepulturas.
O silêncio é uma vergonha. Este mundo é uma vergonha, por contar mortes e ignorar os sonhos. Não se trata apenas de uma guerra a Gaza. Esta é uma guerra contra as crianças. E a história não se esquecerá de quem escolher o silêncio e lavar as mãos.
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